Nós aprendemos o valor da liberdade, o valor de um Legislativo e de um Judiciário independentes e ativos. Aprendemos o valor da liberdade de imprensa, o valor de eleger pelo voto direto e secreto de todos os brasileiros governadores, prefeitos, de eleger, por exemplo, um ex-exilado, um líder sindical, que teria sido preso, que foi preso várias vezes, e uma mulher também que foi prisioneira. Aprendemos o valor de ir às ruas e nós mostramos um diferencial quando as pessoas foram às ruas demandar mais democracia. Aqui no Brasil, não houve um processo de abafamento desse fato. O valor, portanto, de ir às ruas, o valor de ter direitos e de exigir mais direitos.
É claro que eu poderia deixar passar o que vai acima sem fazer alguns senões, mas aí eu não seria eu, né? Como sou quem sou e como se trata de um discurso sobre a verdade, então vamos lá.
“Nós” quem, cara-pálida? O PT e o governo Dilma não aprenderam ainda o valor da liberdade de imprensa. O partido tentou e tenta cerceá-la de múltiplas formas. O Planalto sustenta — e Lula fez o mesmo — a rede suja na Internet, por meio de anúncios da administração direta e das estatais, para difamar as oposições, o jornalismo independente e todos aqueles que o governo considera inimigos.
Quanto às ruas, cumpre notar que o Brasil é hoje o principal fiador do regime venezuelano — e de outros governos autoritários da América Latina. Há quase 200 pessoas presas na Venezuela. Trinta e sete já foram assassinadas desde 12 de fevereiro. A oposição não tem acesso aos meios de comunicação de massa — monopólio do governo —, e milícias armadas caçam opositores a tiros nas ruas. Dilma trouxe esse governo para o Mercosul.
“O que isso tem a ver com a gente?”, indagará alguém. Tudo! Se o PT apoia de forma tão determinada esse governo, não faz isso aqui porque não dá, não porque não queira. E não dá porque seus adversários não permitem. Conclusão: o PT se mantém no campo democrático (quase sempre) porque seus adversários o forçam a tanto; não por convicção.
Embora nós saibamos que os regimes de exceção sobrevivem sempre pela interdição da verdade, pela interdição da transparência, nós temos o direito de esperar que, sob a democracia, se mantenha a transparência, se mantenha também o aceso e a garantia da verdade e da memória e, portanto, da história.
Muito bem! Isso significa, então, que teremos condições de saber tudo o que se passou e se passa, por exemplo, na Petrobras? Parece que não! Em vez de optar pela transparência, o governo soltou seus cachorros loucos para fazer ameaças e chantagens. A democracia não é dama de companhia da história, para lembrar certo senhor. Ela é vivida na prática. A DEMOCRACIA NÃO SERVE APENAS PARA QUE PENETREMOS NOS PORÕES DE EXTINTAS DITADURAS. ELA TEM DE PERMITIR QUE ENTREMOS NOS PORÕES DA PRÓPRIA DEMOCRACIA, OU DEMOCRACIA NÃO É, MAS APENAS UM REGIME DE MAIORIA. E, ORA VEJAM, REGIME DE MAIORIA ATÉ O FASCISMO FOI. E NÃO ERA DEMOCRÁTICO.
Aliás, como eu disse quando instalamos a Comissão da Verdade, a palavra “verdade” na tradição ocidental nossa, que é grega, é exatamente o oposto do esquecimento e é algo tão forte que não dá guarida para o ressentimento, o ódio, nem tampouco para o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento, é memória e é história. É nossa capacidade de contar tudo o que aconteceu.
Há uma confusão dos diabos aí. Esse trololó sobre a verdade ser o “oposto do esquecimento na tradição grega…” Huuummm… A palavra “verdade” tem origem no vocábulo latino “veritas”, que significa justamente “verdade”, mas também justiça, equidade, franqueza, sinceridade. O adjetivo é “verus”, “o verdadeiro, o justo, o razoável, o bem fundado”. É a mesma origem da palavra “verificar” — isto é, alguém pode constatar que o que se diz de fato aconteceu.
O “perdão”, professora Dilma, não tem nada a ver com isso porque se situa em outra esfera — e, de resto, ainda que se estivesse lidando com o conceito grego de “verdade”, tal questão estaria fora do escopo. Então vamos ficar com a palavra “verdade” como aquilo que “aconteceu” e que se pode “constatar” porque verificável. Vamos ver aonde isso nos leva.
O dia de hoje exige que nós nos lembremos e contemos o que aconteceu. Devemos isso a todos os que morreram e desapareceram, devemos aos torturados e aos perseguidos, devemos às suas famílias, devemos a todos os brasileiros. Lembrar e contar faz parte, é um processo muito humano e faz parte desse processo que nós iniciamos com as lutas do povo brasileiro, pelas liberdades democráticas, pela anistia, pela Constituinte, pelas eleições diretas, pelo crescimento com inclusão social, pela Comissão da Verdade, enfim, por todos os processos de manifestação e de ampliação da nossa democracia que temos vividos ao longo das ultimas décadas, graças a Deus.
Muito bem! Se nós formos “verificar” o que aconteceu, teremos de entrar, por exemplo, no credo da VAR-Palmares, um dos três grupos terroristas a que Dilma pertenceu. Eu quero que ela me apresente o credo democrático desses agrupamentos. EU QUERO VERIFICAR. Igualmente verificáveis devem ser os pressupostos libertários de outros tantos que, em tese, ajudaram a construir a democracia.
Se é de “veritas” que estamos falando, se é do “verus” que estamos falando, se estamos no terreno do “verificável”, pergunto à professora Dilma se os mais de 120 que foram mortos pelos terroristas integram a sua lista de mártires. Integram? Onde eles estão? Quem se importa com eles?
Um processo que foi construído passo a passo durante cada um dos governos eleitos depois da ditadura. Nós reconquistamos a democracia a nossa maneira, por meio de lutas e de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais. Muitos deles traduzidos na Constituição de 1988. Como eu disse, na instalação da Comissão da Verdade, assim como eu respeito e reverencio os que lutaram pela democracia, enfrentando a truculência ilegal do Estado e nunca deixarei de enaltecer esses lutadores e essas lutadoras, também reconheço e valorizo os pactos políticos que nos levaram a redemocratização.
Isso quer dizer que Dilma defende a Lei da Anistia ou não? Escrevi hoje de manhã a respeito. Se é de “verdade” que estamos falando, então que fique claro: a democracia é filha da resistência pacífica e daqueles que conservaram os valores da democracia, não da luta armada nem dos ataques terroristas. Também não é menos “verdade” — e, pois, “verificável” — que os que foram depostos em 1964 desprezavam o regime democrático. A propósito Dilma inventou que a palavra “verdade” é incompatível com “perdão”. Diz também ser incompatível com “esquecimento”. Ocorre que “anistia” quer dizer justamente ”esquecimento”, “perdão geral”. E, se é geral, vale para todo mundo. E aí? Se a professora fizer uma pesquisa, verá que “anistia” e “amnésia” são palavras da mesma raiz. Vale para todo mundo? Vale só para alguns?
Como eu disse, nesse Palácio, repito, há quase dois anos atrás, quando instalamos a Comissão da Verdade, eu disse: se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulos, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca, mas nunca mesmo, pode existir uma história sem voz. E quem da voz à história são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la. E acrescento: quem dá voz à história somos cada um de nós, que no nosso cotidiano afirma, protege, respeita e amplia a democracia no nosso país. Muito obrigada.
Então Dilma que tenha a coragem de convidar a Comissão da Verdade a contar também a história dos mais de 120 que foram mortos em atentados terroristas praticados pelas esquerdas, alguns deles mortos pelos grupos aos quais ela própria pertencia. Sem isso, o seu conceito de verdade não é nem grego nem latino. É só uma empulhação. Isso quanto ao passado. No que concerne ao presente, dê um murro na mesa e permita que se apurem as falcatruas na Petrobras, sem ameaças nem chantagens. Para encerrar: na frase “quem dá voz à história somos cada um de nós”, não há um erro de conceito, só de gramática.
Por Reinaldo Azevedo