EUA

O que pensam os norte-americanos que têm um arsenal de armas em casa

Scott Porter ganhou sua primeira escopeta aos 13 anos. Era calibre 20, como a de seu irmão, Ross. Sua mãe o presenteou no Natal e com ela aprendeu a caçar em sua cidade, no estado de Michigan. A segunda chegou aos 18, calibre 22. Depois, mais cinco escopetas. Com o passar do tempo, 14 pistolas de vários tipos. E também quatro rifles de assalto, seis de caça, quatro de ar comprimido, dois de pólvora e dois fuzis militares antigos, que guarda com cuidado especial. É o arsenal que acumulou com Ross, falecido há dois anos, e que guarda em sua casa na Louisianna – um total de 42 armas. Entre elas ainda está aquela da noite de Natal. E quando perguntam a ele por que raios tem tantas, responde com simplicidade: “É só que gosto, adoro as armas, sempre fui caçador”.

Na quarta-feira, dia 14 de fevereiro, um garoto problemático de 19 anos chamado Nikolas Cruz apareceu em sua antiga escola na Flórida com seu rifle, disparou mais de 100 tiros e tirou a vida de 17 pessoas, quase todos adolescentes, sem qualquer motivo. Cada vez que acontece uma matança assim, o sangue de Porter ferve, porque ressurge o debate sobre as armas e a pergunta de como é possível que, depois da enésima tragédia, os Estados Unidos não imponham mais restrições. “Fico muito irritado porque todo mundo acredita que a culpa é das armas, mas o problema são os loucos”, lamenta por telefone. Porter tem 57 anos, trabalha como técnico e vive com sua esposa em Baton Rouge. “Muita gente diria que como tenho tantas sou um fanático por armas, mas tenho tantas porque acumulamos com os anos, gosto delas.”

Os Estados Unidos representa menos de 5% da população mundial, mas tem mais de 40% das armas de uso civil do planeta. Sem um número oficial, calcula-se que haja cerca de 350 milhões, mais do que os habitantes do país. Segundo a Pew Research, três em cada dez adultos têm pelo menos uma e outros três pensar em ter no futuro.

Há quem tenha pensado que Sandy Hook seria um ponto de inflexão na história de amor entre a América e as armas. Sandy Hook é a escola primária de Newtown (Connecticut) onde em 14 de dezembro de 2012 o jovem Adam Lanza entrou e matou 20 crianças entre seis e sete anos, além de sete adultos. O espanto foi generalizado. Barack Obama chorou em público. Mas as vendas de rifles e pistolas multiplicaram-se nos meses posteriores por medo de que, na verdade, a tragédia levasse os legisladores a impor mais restrições. Não aconteceu. As exigências de parte importante da sociedade – seis em cada 10 americanos acreditam que as normas deveriam ser mais estritas – são barradas na hora no Congresso.

Como um cowboy do oeste, George L. Lyon abre a porta de sua casa em Washington com uma pistola nas costas, presa a um cinto. Tem uma boa coleção de armas de cano curto e longo, mas as que costuma usar quando sai à rua são uma Glock 43, uma Glock 26 e um revólver Smith & Wesson 5. Ele próprio, instrutor e advogado pró-armas, processou o Distrito de Columbia há alguns anos e derrubou a proibição de portá-las fora de casa. Sobre a mesa de sua sala de jantar, vai explicando qual prefere usar no verão ou no inverno, e por que acredita que precisa usá-las junto ao corpo como se fosse um celular.

“Nunca se sabe o que vai acontecer e não se pode levar consigo um policial, é pesado demais. Uma arma de fogo é como um extintor de incêndio. Normalmente, você não precisa de um extintor de incêndio até que precise de verdade; é a mesma coisa com uma arma. Você não espera que haja um incêndio para então ir comprar um extintor, porque é tarde demais”, diz.

A adesão dos estadunidenses às armas tem a ver, em parte, com as particularidades do país. Scott Porter fala de sua paixão pela caça e de outros muitos cidadãos, da necessidade de defesa, um sentimento que emana dessa cultura individualista tão arraigada na sociedade, inclinada a pensar que o Governo não estará ali para ajudá-los se a coisa apertar. Os ativistas costumam citar um exemplo: É possível proibir de ter um fuzil uma família que vive isolada em uma casa, com o policial mais próximo a 40 minutos de carro? Há milhões de pessoas nessa situação. Mas, para os mais nacionalistas, esse direito é uma questão identitária e qualquer crítica a respeito é interpretada como uma ameaça ao estilo de vida americano, ideia que inflama a poderosa Associação Nacional do Rifle (NRA, em sua sigla em inglês), grande defensora do argumento pró-armas.

“Cresci em uma família que vinha da União Soviética, alguns parentes foram presos pelo Politburo e enviados a campos de trabalho. Tiraram deles seu direito de defesa. Vendo essa história, acho que se tivessem tido armas não teria morrido tanta gente”, afirma Gabriella Hoffman, de 26 anos, enquanto toma um café em Springfield (Virgínia) antes de ir em uma manhã de inverno à galeria de tiro em que costuma praticar com sua Smith de nove milímetros.

A imprensa norte-americana publicou que as vendas aumentaram entre afro-americanos e membros do coletivo LGBT no último ano, por medo dos crimes de ódio. Em geral, entre os proprietários há muito mais homens do que mulheres, e mais republicanos que democratas. Hoffman, consultora de mídias, conta a experiência de uma universitária que foi estuprada por um homem que entrou por uma janela de seu apartamento no campus. “Se tivessem permitido que ela tivesse uma arma, teria podido se defender”, afirma. “Eu, sendo mulher, e sendo também bem pequena, não quero ser vulnerável. E é meu direito constitucional”, enfatiza.

O direito às armas é consagrado na segunda emenda da Constituição e não se discute nos Estados Unidos. A polêmica gira em torno de como se interpreta esse princípio, que restrições há que se impor, e por que deu espaço a um mercado tão frouxo no qual um garoto de 18 anos a quem não se permite beber cerveja tem acesso livre para portar um rifle semiautomático AR-15, o best seller das armas, o mesmo usado na quarta-feira passada na Flórida.

Columbine (1993, com 13 mortos), Virginia Tech (2007, 32 mortos), Las Vegas (2017, um total de 58 mortos). Os massacres têm repercussão internacional, mas o grosso das vítimas é vítima de pequenas ocorrências diárias. Esta é a parte da guerra do país mais rico do mundo: desde que o ano começou, menos de dois meses, mais de 1.800 pessoas morreram por armas de fogo, segundo a organização Gun Violence Archive. Em janeiro um garoto de 15 anos matou outros dois adolescentes em um instituto de Kentucky e a notícia mal foi divulgada na imprensa norte-americana.

Hoffman é membro da NRA e repete os argumentos tradicionais, a saber: não são as armas que matam, mas as pessoas; aumentar as restrições não servirá de nada se os crimes forem cometidos por pessoas más que não cumprem as exigências. Muita gente pede mais controle, diz, “sem saber que as leis vigentes já previnem a compra de armas para certos delinquentes, agressores domésticos, gente com passado perigoso”. No caso desta semana, os partidários das armas afirmam que o FBI não investigou o menino, apesar das advertências recebidas. A pergunta é como as forças de segurança vão controlar todas as pessoas de risco em um país com mais de 300 milhões de armas.

Um fenômeno tão singular como o desses banhos de sangue nas mãos de lobos solitários é impossível de desassociar da rapidez com que se tem acesso a uma arma nos EUA. Adam Lankford, da Universidade do Alabama, demonstrou em um estudo comparativo de 171 países há alguns anos: 31% das chacinas entre 1996 e 2012 tinham ocorrido em solo estadunidense. “Estados Unidos, Iêmen, Suíça, Finlândia e Sérvia são os países com mais armas per capita e no estudo aparecem entre os 15 com mais tiroteios”, explica o pesquisador.

Depois de cada matança se repete uma sequência similar: comoção nacional, incredulidade em meio mundo e alta nas vendas. Cada estado aplica a segunda emenda a sua maneira, fiel reflexo da diversidade norte-americana: hoje há alguns muito permissivos, como o Arizona, onde qualquer um pode carregar sua arma à vista sem necessidade de autorizações inclusive para bares, à Califórnia, onde são proibidos os rifles de assalto. Diz Scott Porter que são tantas as armas que já existem nos lares que é muito difícil voltar atrás. Na sexta-feira, depois das mortes dos adolescentes na Flórida, acreditava que o mais viável era cortar a compra de munição de pessoas com problemas. Nikolas Cruz tinha um AR-15, o chamado rifle da América, de forma perfeitamente legal.

 

 

 

 

 

 

 

 

El Pais

 

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