Comportamento

Meme e fake news: Como a internet transforma a discussão política

É preciso estar de olhos bem atentos para acompanhar a velocidade com que os memes circulam nas redes sociais. Com mensagens diretas e um forte apelo de identificação, os memes mudaram a forma com que os brasileiros se relacionam com a política.

Mas, afinal, o que é um meme?

Para os especialistas, o meme está para a memória, assim como o gene está para a genética. Trata-se de uma unidade básica. São ideias, conceitos e valores transmitidos e perpetuados conforme a adesão das pessoas. Ninguém nunca te explicou um meme, mas, mesmo assim, você aprendeu. Tudo isso porque há uma enorme repetição. Se o meme não for passado adiante, ele simplesmente morre. É extinto.

Mas os memes ganham outras funções para além de seu formato humorístico. Na política, os memes são estratégia de convencimento, ferramentas de engajamento e a sátira dos próprio universo dos candidatos.

“Por difundirem suas mensagens de forma simplificada e veloz, os memes contribuem para que o debate político ganhe impulso e amplie seu alcance. O que temos assistido com a popularização das Dilmas Boladas; dos Michéis Temers Poetas; das belas, recatadas e do lar; dos vomitaços, e tantos outros exemplos, é um cenário em que há uma enorme circulação do debate político para camadas que não necessariamente participavam com tamanha ênfase desse debate”, explica Viktor Chagas, organizador do Museu de Memes e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em entrevista ao HuffPost Brasil.

Em entrevista ao HuffPost Brasil, Chagas reflete sobre a influência de virais, memes e fake news no debate público brasileiro.

Como surge um meme? É possível mapeá-lo?

De modo bastante simplificado, os memes de internet normalmente surgem a partir de uma experiência de apropriação e ressignificação de uma mensagem ou de um comportamento. É um fenômeno, no mais das vezes, espontâneo, difícil de ser notado em sua origem, mas não impossível de ser mapeado. Isso porque habitualmente se reconhece a emergência de um meme de modo diacrônico, isto é, em retrospecto. É muito raro identificarmos um meme no momento mesmo em que ele surge. Digo isto porque é importante desatrelarmos a ideia de que o meme atende unicamente a um formato. Como se toda e qualquer imagem legendada compartilhada na internet se tornasse automaticamente um meme. Não é assim. Os memes funcionam como uma piada interna, um valor compartilhado socialmente. Há conteúdos que se apropriam do formato de um meme mas nem por isso se tornam memes. E há conteúdos que não correspondem inicialmente ao que podemos esperar do formato de um meme, mas cuja dinâmica de compartilhamento e significação são próprios de um meme.

Eles são apenas piadas?

Não, nem sempre memes funcionam como conteúdos de humor, nem sempre são apenas piadas. Temos muitos exemplos de memes de internet absolutamente sérios. As hashtags #meuamigosecreto e #metoo não são cômicas, elas servem de válvula de escape para compartilhar depoimentos íntimos e acabam criando redes de solidariedade e reconhecimento em torno delas, o que é típico de um meme.

E quando os memes passaram a ser vistos como estratégia política?

Os memes servem à política de diferentes maneiras. A primeira e mais usual delas é através de sua função retórica, como estratégia de convencimento. Nesse caso, os memes são compreendidos apenas como um formato, um recurso a ser empregado pela linguagem publicitária. E, então, vemos candidatos e partidos utilizando uma linguagem mais descontraída, com larga influência visual e estilística da cultura digital. Mas, em sua grande maioria, essas peças não passam de pôsteres online, peças de propaganda, publicadas com o intuito de persuadir o eleitor.

A segunda função que os memes cumprem é de estimular o engajamento das audiências. Nesse caso, como vemos com o que aconteceu com as hashtags feministas, os usuários das mídias sociais é que transformam efetivamente a experiência em um meme, já que ao compartilhar seus relatos e depoimentos, mimetizam a proposta original.

E há, ainda, uma terceira função não menos importante, que é a de satirizar a política e os políticos, de deslocá-los do lugar que ocupam, como intocáveis, para a posição de alvos de crítica popular. Essas três formas ou funções assumidas pelos memes os tornam um recurso ou um dispositivo político e, portanto, constituem estratégias políticas, ora assumidas pelos políticos em si, ora pela militância ou pelos movimentos sociais, ora pelas audiências em larga escala.

Os memes conseguem aproximar as pessoas da política?

Sim, sem dúvidas, há um lado positivo no fato de os memes aproximarem as pessoas da política. Por difundirem suas mensagens de forma simplificada e veloz, os memes contribuem para que o debate político ganhe impulso e amplie seu alcance. O que temos assistido com a popularização das Dilmas Boladas; dos Michéis Temers Poetas; das belas, recatadas e do lar; dos vomitaços, e tantos outros exemplos, é um cenário em que há uma enorme circulação do debate político para camadas que não necessariamente participavam com tamanha ênfase desse debate.

Naturalmente, o humor é um elemento que auxilia na familiarização e no envolvimento com esses temas, mas, como temos visto, nem sempre podemos argumentar que isso ocorre em função do humor. O ponto definitivo está na “tradução” da mensagem política em um conteúdo de substância rasa e de consumo mais facilitado. Essa operação, evidentemente, tem virtudes e vícios. O principal problema contido nela é o fato de que a informação superficial não contribui para o esclarecimento do indivíduo da mesma forma que a informação em profundidade. Ainda assim, é melhor alguma informação do que nenhuma.

Qual o impacto dos memes na disseminação de fake news? Existe alguma relação entre ambos fenômenos?

Antes de mais nada, é importante reconhecermos as diferenças entre memes e virais.

Os memes são conteúdos que surgem de modo espontâneo, ao passo que os virais são “plantados” para serem difundidos o mais amplamente possível. Nem todo meme, portanto, tem um grande alcance. Muitos circulam em comunidades digitais restritas. Ainda que guardem semelhanças e que possamos identificar virais com memes, dada a semelhança na maneira como se propagam nas redes, os virais não passam por um processo de reapropriação e ressignificação como os memes. Eles simplesmente são difundidos de forma idêntica para uma audiência em larga escala. Ou seja, virais existem desde que a cultura de massas se estabeleceu. As notícias veiculadas na imprensa são, nesta acepção, sejam elas verdadeiras ou não, um tipo de conteúdo que é produzido para ser viralizado, isto é, difundido junto a um público. Dito isso, a fórmula simplificada é: toda fake news é um viral, nem todo viral é uma fake news.

Algumas fake news se apropriam do formato de um meme, utilizando imagens com legenda, hashtags, circulação rápida e individualizada pelas mídias sociais, montagens etc. Mas esse é só um elemento de emulação da linguagem dos memes. Igualmente, a linguagem jornalística é muitas vezes emulada, para dar o tom de que aquela é uma notícia verdadeira.

Assim, sem dúvida, há muitas fake news que são disseminadas com base em uma incorporação de mecanismos presentes na linguagem dos memes. O problema, contudo, não são os memes. Tampouco as fake news, porque elas não são um fenômeno novo no ambiente político ou jornalístico.

O problema está na capacidade de leitura do cidadão médio para discernir entre o que é uma fake news e o que não é. E, nesse sentido, voltamos ao argumento anterior, de que o debate político, por muito tempo, esteve confinado a uma pequena elite, distante do sujeito que hoje se aproxima da discussão dessas pautas. Precisamos fazer com que este sujeito tenha acesso à informação política. Os memes são um primeiro passo, mas é importante que esse sujeito receba também uma informação política em profundidade. E uma ressalva importante é: a informação política em profundidade não é exclusividade dos grandes meios! Esse raciocínio só favorece o monopólio e a concentração da informação nas mãos de um pequeno grupo de atores, o que fatalmente nos levará de volta ao primeiro cenário, em que poucas pessoas de fato detêm a informação, enquanto a opinião pública é, em larga escala, alienada.

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No livro Kill All Normies, a autora Angela Nagle faz uma pesquisa sobre como “o pior da internet se tornou mainstream”. Ela explica que grande parte do conteúdo com mensagens de ódio se tornava viral porque era apresentado na mesma estética que os memes. Como lidar com essa situação? Existe algum controle sob essa disseminação?

Aqui é importante distinguirmos algumas questões. O argumento de Nagle é importante e interessante, mas ele possui alguns viéses e devem ser encarados de modo mais cético, especialmente pelo leitor brasileiro. Para começo de conversa, a realidade descrita por ela diz respeito ao cenário norte-americano, em que comunidades baseadas no anonimato integral (como o 4chan) ou no pseudoanonimato (como o Reddit) são predominantes. No Brasil prevalece um ecossistema de sites de redes sociais, e pouco se houve falar dessas duas primeiras. Aqui, temos uma comunidade de usuários bastante ativa em mídias como Facebook e Twitter.

O 4chan, por exemplo, é um fórum em que a identidade dos usuários não é conhecida, todos atuam anonimamente. E não à toa se reconhecem como anons, donde surge o movimento Anonymous. Muitos dos memes que circulam nos Estados Unidos são oriundos desse tipo de experiência de criação anônima e coletiva. Ao passo que, no Brasil, temos muitos “criadores” de memes, perfis e fanpages que circulam memes “autorais”, ou seja, dinâmicas completamente distintas.

Outra questão importante a ser relativizada é a leitura que Nagle faz dos trolls. Os trolls não são uma subcultura nova, surgida do 4chan, e não são necessariamente disseminadores do discurso de ódio, da mesma forma que os hackers não são necessariamente criminosos. É preciso, antes de mais nada, entender as motivações desses sujeitos, e consubstanciar uma diferença fundamental entre a “trolagem” e o “bullying”, que me parecem bem distintas.

Os trolls são movidos pelo princípio exacerbado do liberalismo. Segundo uma outra pesquisadora, que publicou uma tese sobre o tema, Whitney Phillips, eles cultuam as liberdades individuais, valorizam a liberdade de expressão, a experiência pessoal (mais do que o conhecimento teórico adquirido), e a provocação até o último limite. Naturalmente, esses valores podem se configurar como um problema, à medida que acabam desenvolvendo uma visão cínica sobre o que os rodeia. “Se apenas eu tenho razão, todos os outros estão errados.” Mas não podemos olhar para esse comportamento de modo igualmente cínico.

Os trolls não são um produto do 4chan ou do Reddit, eles não são ativistas de memes, e não são um mal a ser combatido. Fazer esta leitura é apenas cultivar um inimigo da opinião pública, como se não fôssemos todos nós um pouquinho trolls, como se não disseminássemos memes, ou, pior ainda, como se houvesse uma mão invisível, além da nossa compreensão, que atua criando e difundindo memes para nos manipular, já que somos todos ingênuos e inocentes. Eu não acredito nisso.

Há, sem dúvida, grupos de interesse, com financiamentos escusos, atuando politicamente para difundir estrategicamente suas mensagens. De movimentos ultraliberais e populistas como o MBL, até coletivos progressistas como Think Olga, muitos desses grupos fazem usos de memes em suas estratégias de comunicação. Mas, obviamente, o problema maior não está no modo como eles se comunicam. O problema está na origem do financiamento desses grupos e na capacidade de leitura e interpretação dos públicos que atingem.

Então, não, eu não acho salutar qualquer perspectiva em que se proponha controlar os memes. Como não acho salutar qualquer perspectiva em que se proponha controlar a liberdade de imprensa. A imprensa, como os memes, deve ser livre para dizer o que quiser. O que precisamos é saber, com precisão, quais são os interesses defendidos por quem diz o que quer. E dar condições a quem ouve de ouvir criticamente o que é dito.

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