Lava Jato

A saga de Lula contra 32 juízes em busca de salvação (ou ruína) nas urnas

A jararaca quer briga. No primeiro discurso como condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava longe de aparentar qualquer abatimento nesta quinta-feira. Tinha acabado de ser condenado a 9 anos e seis meses de prisão. Entre sorrisos e aplausos, Lula disse ser vítima da imprensa, de procuradores, de delegados e do juiz Sérgio Moro. Falou em “processar essa sentença no Conselho Nacional de Justiça”. A cantilena de vitimização não é nova, mas desta vez é diferente. Para juristas e especialistas em marketing político, Lula precisa emplacar a versão de que sofre perseguição política, porque esse é o único caminho para manter seu eleitorado fiel, reconquistar a Presidência da República e se salvar, definitiva ou temporariamente, das acusações judiciais em seu encalço. Se a narrativa vingar, Lula sobe a rampa do Palácio do Planalto em 2018 e congela o andamento de processos anteriores ao exercício da presidência da República.

Para que a estratégia lulista dê certo, ele precisa evitar uma condenação em segunda instância até agosto do ano que vem. Só assim fica desimpedido de concorrer nas eleições de 2018, o que já é metade do caminho. Isso se, em uma jogada improvável, não forem aprovadas eleições diretas pelo Congresso antes disso, situação em que ele também se diz candidato. Lula só deve ser preso caso a sentença de Moro seja confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região e caso sejam rejeitados os recursos contra essa ratificação. Embora o caminho das urnas seja sensível a narrativas de vitimização, será uma batalha difícil nos tribunais. Depois da primeira sentença, Lula ainda responde a duas ações penais tocadas pelo juiz Moro, no Paraná, e a três processos sob a responsabilidade dos juízes Ricardo Leite e Vallisney de Oliveira, do Distrito Federal.

O ex-presidente terá de enfrentar decisões de pelo menos três juízes de primeira instância, e ato contínuo, seguir o ritual nas instâncias superiores com seis desembargadores de tribunais regionais federais, cinco ministros do Superior Tribunal de Justiça, e cinco ministros do Supremo Tribunal Federal. Isso só na esfera criminal. Se a briga subir para a Justiça Eleitoral, caso seja condenado em segunda instância e tente contestar a aplicação da Lei da Ficha Limpa, terá de enfrentar também sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral e onze ministros do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, para fugir da prisão e subir a rampa do Palácio do Planalto, a salvação de Lula passa não só por uma vitória nas urnas, mas também por decisões favoráveis de uma maioria dos 32 magistrados no seu caminho.

“Nós vamos recorrer em todas as instâncias de todas as arbitrariedades. Eu acho que inclusive é preciso a gente processar essa sentença no Conselho Nacional de Justiça”, afirmou Lula a aliados na sede nacional do PT em São Paulo, em meio a gritos de “Brasil urgente, Lula presidente”.

Lula tenta declarar sua inocência a partir de uma discussão semântica. Avalia que não são “provas” tudo aquilo citado por Moro na sentença do tríplex do Guarujá. Caso raro nos julgamentos do magistrado, nenhum indício é mencionado como motivação da decisão. O magistrado diz que a condenação por corrupção e lavagem de dinheiro, a 9 anos e seis meses de prisão, está embasada apenas por provas documentais, periciais e testemunhais: mensagens telefônicas de executivos da OAS, documentos da cooperativa Bancoop, testemunhas sem acordo de delação premiada e delatores.

Tudo isso levou o juiz Moro a decretar que houve tentativa de recebimento de vantagem indevida mediante ocultação de patrimônio, no caso o triplex do Guarujá, o que justificaria sua condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. “A atribuição a ele de um imóvel, sem o pagamento do preço correspondente e com fraudes documentais nos documentos de aquisição, configuram condutas de ocultação e dissimulação aptas a caracterizar crimes de lavagem de dinheiro”, escreveu o juiz em sua sentença. “A agregação de valor ao apartamento, mediante a realização de reformas dispendiosas, mantendo-se o mesmo tempo oculta a titularidade de fato do imóvel e o beneficiário das reformas, configura igualmente conduta de ocultação apta a caracterizar o crime de lavagem de dinheiro”, continua. Ao todo, a Justiça entende que o ex-presidente se beneficiou de 2,7 milhões de reais, entre o valor do imóvel e as reformas.

Em sua defesa, Lula não explicou até agora por que guardava em casa documentos da Bancoop onde figurava como dono do tríplex – alega que os papéis não estavam assinados.

“Eu queria fazer um apelo à imprensa, um apelo ao povo brasileiro. Se alguém tiver uma prova contra mim, por favor, diga. Mande pra Justiça, mande pra Suprema Corte, mande pra imprensa, porque eu preciso. Eu ficaria mais feliz se eu fosse condenado com base numa prova”, discursou Lula.

A discussão semântica sobre o que são “provas” pode fazer sucesso eleitoral, mas na arena jurídica não é fidedigna, de acordo com juristas. Conclusivas ou não, as provas citadas por Moro (mensagens telefônicas, documentos e testemunhas) costumam ser chamadas também de “provas” por boa parte dos magistrados. Lula até poderia argumentar que as evidências são inconclusivas, não apontam crimes, mas prefere emplacar a versão de que simplesmente não existem provas contra ele. “Leigos estão acostumados a lidar com provas típicas de crimes como homicídios, que deixam vestígios concretos e impressões digitais. Mas criminalidade econômica exige outro tipo de prova. E há muitas delas no processo do tríplex. São provas diretas: documentos, testemunhas”, explicou a jurista Silvana Batini, professora da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e Procuradora Regional da República.

No caso do tríplex do Guarujá, é indiferente se Lula efetivamente exerceu a posse do imóvel ou não, explica a jurista.

“Para o crime de corrupção, é indiferente o fato de ter tomado posse ou não. Só a oferta ou a aceitação já configuram o delito”, diz Batini.

Contestar provas não é o único desafio judicial do ex-presidente. Mesmo sem condenação em segunda instância, Lula pode ter a candidatura barrada pela Justiça de outras maneiras. Isso porque o Supremo Tribunal Federal decidiu no ano passado, por maioria no plenário, que réus não podem ocupar a linha sucessória da Presidência da República. Não é um desafio exclusivo de Lula — outros pré-candidatos, como o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), também são réus. Bolsonaro vai ser julgado por incitar o estupro da deputada federal Maria do Rosário (PT). A decisão do STF não tratou especificamente dos casos de réus eleitos para a Presidência da República, mas esse mesmo princípio pode embasar pedidos de impugnação de candidatos que respondam a ações penais. As contestações podem partir da Procuradoria-Geral da República ou de candidatos e partidos rivais. “Por enquanto, o único caminho seguro para Lula é o Senado, porque ele não enfrenta essa questão de ser réu na linha sucessória. Mas o Supremo ainda tem de discutir se candidato eleito a presidente da República está ou não na linha sucessória”, explica o jurista Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

Narrativa de vitimização dá voto?

O ex-presidente fez de Moro um antagonista desde que foi enredado na Operação Lava Jato. Na condução coercitiva, na publicidade dos grampos telefônicos e no depoimento prestado ao juiz, cada ato foi questionado ou atacado. Em discursos, Lula criou uma narrativa em que se diz vítima de perseguição da Justiça, inclusive politicamente, condenado sem provas. O ex-presidente chegou a formalizar queixas contra Moro no Conselho Nacional de Justiça e nas Nações Unidas. Nenhum outro réu partiu tanto para cima do juiz.

Depois de tanta cizânia, o magistrado acabou sucumbindo ao antagonismo de Lula, e usou boa parte da sentença do triplex, o espaço possível, para contestar as alegações de parcialidade. Em um dos trechos, ele rebate a suposta tentativa de boicotar a candidatura do ex-presidente. “Em síntese e tratando a questão de maneira muito objetiva, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não está sendo julgado por sua opinião política e também não se encontra em avaliação as políticas por ele adotadas durante o período de seu Governo (…) Também não tem qualquer relevância suas eventuais pretensões futuras de participar de novas eleições ou assumir cargos públicos. Então, ao contrário do que persiste alegando a defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo em suas alegações finais, a decisões judiciais deste Juízo, conforme já apreciado nos foros próprios da Justiça, não foram criminosas e constituíram atos regulares no exercício da jurisdição”.

“A sentença tem um componente político muito forte e eu obviamente que não vou entrar nos componentes jurídicos, porque tudo que eu tenho lido até agora e tudo que eu tenho ouvido é que o juiz Moro passou praticamente escrevendo 60 páginas pra se justificar da condenação”, discursou Lula

No campo jurídico, nenhuma iniciativa de Lula contra Moro produziu resultado favorável até agora. Mas, na arena político-eleitoral, o ex-presidente aproveita o confronto com o juiz como palanque de sua candidatura à Presidência da República. Como a vitória nas urnas é a única salvação contra uma temporada na prisão, não havia outro caminho possível, explica o marqueteiro Fernando Barros, sócio da agência Propeg.

“Ele nunca vai entrar na discussão jurídica, porque a discussão que ele gosta é política. E não existe política sem antagonismo. A decisão de partir para o ataque contra Moro era a única estrada que restava para ele. Ele tinha que se vitimizar politicamente, sempre vai dizer que não há provas. Com isso, ele dialoga com a base eleitoral dele”, analisa o marqueteiro. “É melhor para ele ser um injustiçado, um cara que enfrentou poderosos. É o time que está mal, mas diz: ‘acredita em mim que eu vou ganhar’”, completa.

Partir para o confronto ajudou a manter seu eleitorado, avalia Barros: “Lula está segurando a participação de mercado dele, fazendo isso com inteligência. Não creio que ele consiga novos adeptos. Mas assim preserva o que já possui e isso já é grande coisa”.

O marketing de herói injustiçado também empolga parcela significativa do PT e de aliados. Mas Lula evitou até agora um conflito generalizado com o Judiciário, pelo menos em público. O ex-presidente só fez uma crítica genérica ao Supremo Tribunal Federal, ao chamá-lo de “acovardado” em uma conversa telefônica grampeada pela Polícia Federal. O presidente do PT no Rio de Janeiro, Washington Quaquá, avalia que esse é o caminho correto para o sucesso eleitoral e jurídico do ex-presidente. “Lula está certo. Obviamente que ele não pode comprar briga com o Judiciário como um todo, porque não é um bloco”, afirmou Quaquá.

Ao encerrar seu primeiro discurso como alguém condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente disse que “vai quebrar a cara quem acha que é o fim do Lula”. “Somente na política, quem tem o direito de decretar o meu fim é o povo brasileiro”, afirmou. Só que nem sempre as narrativas terminam como os protagonistas desejam.

Mais popular