Ela cresceu ouvindo o pai declamar Castro Alves. Dele herdou a consciência moral e da mãe, a consciência cristã. E então foi construindo sua trajetória, hoje como professora de direitos constitucionais da PUC-SP e da Uninove, e presidindo o Instituto Liberta, criado pelo filantropo Elie Horn, de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.
Antes, foi secretária de assistência social da Prefeitura, na gestão de Fernando Haddad, a quem admira e se identifica. Ex-delegada de defesa da mulher, em Osasco, trabalhou também com o governador Geraldo Alckmin e tem Gabriel Chalita em alta conta.
Defende a legalização do aborto, das drogas e regulamentação da prostituição. Luciana Temer, 48 anos, a filha primogênita do presidente Michel, foge dos paradigmas óbvios do jogo fácil das polarizações políticas. Ela decidiu compartilhar um olhar mais íntimo sobre suas crenças e valores, nesta entrevista que se segue.
Qual seria o inconsciente coletivo do brasileiro hoje?
Hoje, as pessoas estão se sentindo à vontade para fazer e dizer coisas, especialmente nas redes sociais, que traduzem o que elas não tinham coragem de dizer antes face a face, e que agora estão mais livres para falar. Se por um lado isso é bom porque as pessoas podem se manifestar mais livremente, por um outro lado, esse espaço criado pela internet, pelas redes sociais, tornou as pessoas mais agressivas, mais radicais nas suas posições. Coisas que estavam no inconsciente das pessoas e que elas deixavam lá quietinhas, agora elas estão deixando os bichos ficarem mais soltos. De alguma forma, tem alguma coisa acontecendo que traz uma belicosidade nas colocações como se a gente voltasse um pouco para a idade da pedra. Eu sinto que tem um certo ambiente – que é esse ambiente virtual – que faz com que as pessoas peguem em armas e tratem as questões de forma muito agressiva.
Isso é uma coisa brasileira ou mundial?
Mundial.
Qual seria o acento brasileiro?
Eu acho que no Brasil temos essa crise política absolutamente acirrada, onde, supostamente, o brasileiro acordou para uma questão que é a questão da corrupção; mas, ao mesmo tempo eu digo supostamente, porque ficou uma ideia de que esse malfeito brasileiro só acontece e está centrado nos políticos e nas instituições, o que não é verdadeiro. A polarização fica num nível tão raso de discussão: bons e maus, maniqueísta. “Eu sou bom, você é mau”. Eu sempre falo para os meus alunos dessa divisão de “nós” e “eles” – como se o Congresso Nacional fossem “eles”. Quem é o Congresso Nacional se não nós mesmos? Nós mesmos que somos cidadãos brasileiros, nós mesmos que elegemos.
Você acha que falta consciência ética e social no dia a dia do brasileiro?
Não podemos generalizar, tem gente muito boa. Mas acho que existe uma cultura permissiva no Brasil em todos os aspectos e setores. Na consciência do brasileiro o não cumprimento da lei é porque essa lei não é boa, essa regra não é boa. Ou é difícil e não vou conseguir cumprir, e eu me permito descumprir.
Como reage aos escândalos de corrupção que a gente ouve?
Conheço o pai que tenho e sei os limites éticos dele.
No seu governo?
A corrupção é uma coisa endêmica, um problema sério em todos os níveis. É preciso repensar posturas individuais e cotidianas. Falamos muito das grandes corrupções, mas na hora de deixar o carro na vaga reservada a pessoas com deficiência, partimos para o discurso de que “é só um minutinho”. A sociedade precisa ser mais educada.
Em termos de pensamento político, a sua construção vai por onde?
Eu tenho uma formação humanista que vem de casa, tanto do lado paterno como materno. Minha mãe, que foi sempre alguém que procurou ajudar as pessoas e me ensinou que era importante cuidar das pessoas que estão a nossa volta. E o meu pai, porque tem essa formação, não só jurídica, mas de família muito rígida, uma moral muito rígida. De família árabe muito grande, muito unida, que teve sempre teve esse discurso bastante rígido do ponto de vista moral. Nós crescemos com esses dois lados – a minha mãe, Maria Célia, sempre pelo lado da caridade. E a formação mais estruturada do ponto de vista da consciência social, vem do meu pai. Nós íamos daqui até Tietê – onde ficava a chácara da nossa família, e íamos todo fim de semana ficar com a minha avó -, ouvindo meu pai declamar ‘Navio Negreiro’ (Castro Alves) inteirinho. Uma coisa super tocante.
Como você se define, ideologicamente falando?
Sou uma pessoa que busca uma maior justiça social de forma ampla, não só do ponto de vista econômico e financeiro.
Você ter trabalhado com o Haddad é uma coisa curiosa…
O Haddad é um militante petista, mas ele é um professor universitário, assim como eu sou uma professora universitária. Ele é um sujeito que foi se aprimorando intelectualmente, assim como eu busquei me aprimorar intelectualmente ao longo dos anos. Eu fui trabalhar com uma pessoa que fez um caminho de busca, de consciência social, assim como eu fui buscando meu caminho. Então não acho tão estranho que eu tenha ido trabalhar com o Haddad. Nesse tempo de polarização, as pessoas tendem muito a associar o seu sobrenome a uma pauta que exclui o direito das mulheres, que torce o nariz ao direito sobre o próprio corpo… Eu tenho duas irmãs, que são psicólogas. Nós somos três mulheres independentes, que trabalham, que a vida inteira ganharam o seu dinheiro e se sustentaram, e eu escutei do meu pai a vida inteira a seguinte instrução: “você tem que trabalhar e ganhar o seu dinheiro, porque a independência só existe quando você se sustenta. Você só é uma pessoa livre e independente quando paga as suas contas”. Aí eu me pergunto, onde está o machista dessa brincadeira do ‘recatada e do lar’? Porque a Marcela tem um outro perfil. É uma grande companheira dele, mesmo, de mais de 12 anos, e que tem outro perfil, e que eu respeito perfeitamente.
Política te interessa?
A grande política me interessa, política partidária não me interessa pessoalmente, não tenho vocação. Eu me filiei ao MDB para assumir a secretaria de assistência com o Haddad.
Você gostou de trabalhar com o Alckmin?
Eu o respeito muito. É um sujeito muito sério, muito íntegro. Essa é minha experiência pessoal com ele. Se você perguntar com quem eu tenho mais afinidade de trabalho, de pensamento, eu tenho muito mais afinidade com o Haddad.
Na sua família o pensamento é homogêneo?
Não. Muito chato pensamento homogêneo. Com quem você vai discutir no almoço? A gente tem bons debates, mas temos uma afinidade num pensamento mais liberal. Lógico, sobre determinados assuntos eu não penso como o meu pai que é de outra geração, suas posições não são as mesmas e temos bons debates sobre essas questões. A questão de gênero, a questão de política de drogas, a gente tem posições que são diferentes.
Em gênero e drogas vocês discordam?
Na verdade, ele pensa uma política de enfrentamento da droga mais conservadora. Quando aparece um ministro como o Osmar Terra falando em internação e abstinência total, de certa forma ele endossa. É uma linha mais tradicional. Quanto a gênero, meu pai é uma pessoa que prega uma relação de igualdade. Nunca pregou desigualdade. Mas ele parte de um discurso de que basta a defesa da igualdade, não precisa cotas nem distinções.
Como você se sentiu quando ele apresentou uma equipe ministerial composta apenas por homens?
É uma questão um pouco de um homem mais velho que teve um convívio mais fácil a vida inteira com homens. Ele tem mais referências de homens que mulheres. Eu se fosse montar uma equipe, talvez montasse uma equipe mais feminina. Mas veja, Haddad, que é super moderno, tinha 3 mulheres em 27 secretarias…Não acho enfim que ele não tenha chamado mulheres por exclusão. Não houve predisposição em não chamar. Por outro lado, não houve predisposição em buscar um nome. Parece bobo, mas isso faz diferença.
Conte um pouco sobre o trabalho do Instituto Liberta.
Estamos na estrada há um ano e cuidamos de uma temática exclusiva, que é a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. O Brasil é o segundo país com maior índice de exploração sexual infantil e o quarto país no índice de casamentos infantis. A estimativa é de mais ou menos 500 mil meninas e meninos explorados anualmente, e a maioria têm entre 7 e 14 anos. São dados muito tristes.
Quando aconteceram essas crises agudas envolvendo o seu pai, você conseguiu separar as coisas, ficar tranquila?
Não. É muito triste, muito difícil você ver o nome do seu pai, que é uma pessoa que você conhece há 50 anos, jogado na lama. Quando saiu na Globo aquela primeira chamada dizendo que havia um áudio no qual meu pai dizia pra o Joesley para subornar o (Eduardo) Cunha pra ficar calado, eu estava na rua, ouvindo o rádio. E aí eu cheguei em casa, meus filhos estavam em casa, não tinham ouvido a notícia; liguei no Jornal Nacional, e aí o meu filho virou pra mim e falou assim: “O que é isso? Você acredita? O que está acontecendo?”. Eu falei: “olha, meninos, eu não ouvi esse áudio, ninguém ouviu esse áudio. Mas, eu vou dizer pra vocês, eu corto os meus dois braços se o seu avô falou uma coisa dessas. Eu conheço o seu avô há 50 anos, ele jamais, em tempo algum falaria uma frase dessas.” E, afinal, quando saiu o áudio essa frase não existia. A frase que aparece no áudio é: “Estou mantendo uma boa relação”. “Ah, você deve mesmo fazer isso”. Isto é meu pai.
Com informações do Estadão Conteúdo